Thursday, December 26, 2013

Por que os condrócitos param na acondroplasia ?

Introdução

O objetivo deste artigo é revisitar a origem da acondroplasia a partir de uma nova perspectiva, inspirada por um artigo muito interessante do Dr. Pavel Krejci, um entusiasmado pesquisador da biologia do receptor do fator de crescimento de fibroblastos 3 (FGFR3) e um forte aliado da pesquisa da acondroplasia, publicado apenas algumas semanas atrás. (1) Este texto busca interpretar a hipótese formulada pelo Dr. Krejci para explicar a acondroplasia.

Esta breve revisão irá também nos ajudar a introduzir o próximo artigo planejado para o blog, que é sobre o efeito do bloqueio da cascata enzimática discutida aqui. Sei que os 17 leitores originais do blog podem achar este texto um pouco repetitivo mas, enquanto adquirimos mais conhecimento sobre a acondroplasia, sempre incluímos um detalhe a mais.

A vida é elétrica

A vida funciona com eletricidade. Cada momento de um ser vivo é governado por reações químicas coordenadas, a partir de transferências de cargas elétricas. Se pensarmos um instante que no corpo há milhares e milhares de moléculas que participam deste programa químico coordenado, podemos começar a entender como a vida é complexa. Você pode imaginar o tipo de "software" necessário para controlar esta máquina incrível ? Um programa principal para controlar a máquina da vida precisa ser muito robusto e forte.

No entanto, ao mesmo tempo em que a vida é dirigida por um programa incrivelmente forte, ela também é muito frágil. Com bilhões de reações químicas (elétricas) que ocorrem no corpo em apenas um dia, erros tendem a surgir. É preciso apenas um erro não identificado na construção de uma nova molécula no interior da máquina e o equilíbrio poderia ser quebrado, levando o corpo de um estado saudável à doença. Um bug no software e as consequências podem ser graves para a máquina.

Contudo, a máquina tem o seu próprio software de controle de qualidade que funciona junto com o principal e, por isso, quando as coisas saem errado, o software guardião é ativado e a grande maioria dos erros é corrigida muito rapidamente. Em uma célula, se o software de controle de qualidade detecta um erro e não pode corrigi-lo, outras medidas de controle são iniciadas, e a célula pode determinar sua própria morte ou ir a um estado de paralisia chamado de senescência celular (2,3) (vamos lembrar disso mais tarde).

Proteínas, interruptores elétricos

No corpo, os mestres das reações químicas (elétricas) que conduzem a vida são moléculas que chamamos de proteínas. As proteínas são grandes estruturas feitas de outras menores, conhecidas como aminoácidos. Embora muitos aminoácidos existam na natureza, há um número limitado deles considerados essenciais para a vida. Todas as proteínas presentes no corpo são feitas dos mesmos aminoácidos e são suas combinações específicas, codificadas no DNA, que criarão diferentes proteínas funcionais. Combinações corretas de aminoácidos são fundamentais, pois cada um tem suas próprias propriedades elétricas. Então, você pode perceber aqui que se uma proteína conduz reações elétricas de uma certa maneira devido à sua conformação (posicionamento da cadeia de aminoácidos), então imagine o que pode acontecer quando a conformação está errada. Um aminoácido mal colocado e a proteína pode tornar-se inativa ou ativa demais.

Apesar de serem os mestres da vida, nem todas as proteínas realizam reações químicas e, quando o fazem, são chamadas de enzimas. Podemos pensar em enzimas como interruptores químicos (elétricos) de parede. Suas atividades permitem que o corpo funcione corretamente e reaja muito rápido a estímulos internos e externos.

Figura 1. As proteínas são como interruptores elétricos




Normalmente, as enzimas não funcionam sozinhas. Pelo contrário, na maioria das vezes elas atuam em conjunto com os outras de uma forma que poderíamos compará-las com os blocos de uma cadeia de dominó, onde o primeiro bloco atinge outro e este atinge um terçeiro, para gerar um efeito no final da linha. No caso das enzimas, a reação química, ou o sinal, irá fazer a célula que o está recebendo se comportar de uma maneira apropriada para responder à causa do sinal.

Figura 2 . Uma cascata de enzimas é como um efeito dominó




Um sinal químico pode começar como uma resposta ao tempo lá fora, em uma estação de esqui ou na praia. Seja o tempo frio ou quente, o corpo irá responder para equilibrar a temperatura interna com a do meio ambiente, através de centenas de reações químicas em muitos tecidos e órgãos. Como mencionado acima, se todos os sinais estão sob controle, o corpo irá responder de forma adequada, de outro modo, haverá problemas à frente.

Entendendo a acondroplasia

Todos esses conceitos são importantes, porque eles podem nos ajudar a entender o que acontece em condições clínicas como a acondroplasia. Na acondroplasia, uma dessas proteínas ativas, o FGFR3 (Figura 3), contém uma modificação na sua estrutura, uma mutação, que faz com que seja mais ativa do que o habitual. Se o erro de construção do FGFR3 acontecesse em um corpo adulto, é provável que o software de controle de qualidade pudesse enxergá-lo e resolvê-lo, caso contrário o erro poderia conduzir ao câncer (veja abaixo).

No entanto, como na acondroplasia o erro é inato (o que é chamado no jargão técnico de uma mutação germinativa), a mutação não seria reconhecida como um erro
pelo controle de qualidade pois está no código do DNA desde o princípio. Se um erro está causando muitos problemas desde o início, a nova forma de vida em desenvolvimento (o embrião) não será bem sucedida. Na acondroplasia, o FGFR3 alterado exerce uma influência indevida desde o início, que prejudica o crescimento ósseo já no útero, mas em uma intensidade que usualmente não ameaça a vida. No entanto, com uma enzima receptora workaholic na máquina, o programa de desenvolvimento do novo ser terá dificuldades (ver abaixo).

Figura 3. Um modelo estrutural de FGFR3




Sinais químicos levam à acondroplasia

Após o nascimento, o FGFR3 é produzido quase que exclusivamente, ou seja, de forma relevante, por células chamadas condrócitos, que vivem dentro de uma região muito especializada nas extremidades dos ossos longos, a placa de crescimento cartilaginosa.

A função normal do FGFR3 é ajudar os condrócitos a controlar sua própria velocidade de proliferação (multiplicação) e maturação. Se o FGFR3 está ausente, os ossos crescem excessivamente e consequências danosas também surgem. (4) Portanto, em condições normais, o FGFR3 é um importante freio para o crescimento natural dos condrócitos. No entanto, uma vez que na acondroplasia o FGFR3 está sinalizando em excesso, o resultado é que os condrócitos simplesmente param de proliferar e amadurecer, o que causa uma parada do crescimento ósseo em geral e às características clínicas dessa condrodisplasia.

Mencionamos que as enzimas não trabalham sozinhas, e o FGFR3 não é uma exceção. Ele está associado a uma série de cascatas de enzimas para exercer suas funções (Figura 4) e nós vamos revisitar uma delas, a da proteína quinase ativada por mitógeno (MAPK), que foi a explorada pelo estudo que veremos no próximo artigo do blog.

A cascata MAPK

Nos últimos anos, um número crescente de evidências tem sido publicado apontando a cascata enzimática MAPK como o provável principal motor da parada do crescimento ósseo visto na acondroplasia. (5)

Figura 4. Cascatas de sinalização do FGFR3



Por exemplo, vários estudos que exploram o peptídeo natriurético tipo C (CNP) contribuíram muito para a compreensão de como a sinalização da MAPK prejudica o crescimento ósseo. (6-9) Isto, por sua vez, resultou no desenvolvimento da primeira terapia farmacológica potencial para a acondroplasia, o análogo do CNP BMN-111 (10), agora prestes a entrar na fase 2 do seu desenvolvimento clínico. Para saber mais sobre o desenvolvimento clínico de um novo medicamento potencial você pode visitar este artigo anterior do blog.

O FGFR3 é uma antena química

A cascata MAPK está representada na figura 4 acima de uma forma muito simplificada. Em resumo, o FGFR3 é chamado de enzima receptora (ou tecnicamente, uma tirosina-quinase receptora) porque ele está situado cruzando a membrana celular (a capa) do condrócito (Figura 3), como uma antena sobre o telhado de um edifício, esperando sinais de TV. O estado natural do FGFR3 é inativo (ou desligado). Já revi este tema em outros artigos deste blog.


Figura 5. FGFR3, uma antena no telhado da célula

Wikimedia commons
O FGFR3, como uma antena de TV pronta para receber apenas ondas de TV, aceitará estímulos específicos apenas de proteínas chamadas FGFs. Quando um FGF se liga ao FGFR3, o receptor torna-se ativo (ou ligado), o que causa uma alteração no corpo do FGFR3, que por sua vez irá gerar uma carga elétrica, o sinal, o qual é produzido pelo deslocamento de alguns íons de fósforo (um fenômeno chamado de fosforilação) na parte do receptor que fica no interior da célula.

Este sinal elétrico/químico vai ser conduzido a outras moléculas vizinhas e, ao viajar de uma para a outra, como na cadeia de dominó, o sinal vai atingir a primeira enzima da cascata da MAPK, que é chamada de Ras. A Ras é ativada e ativará a enzima seguinte na via, chamada Raf, que irá então ativar a MEK, que por sua vez transfere o sinal para uma outra enzima chamada ERK. A ERK é o mensageiro que levará o sinal trazido pelo FGF lá de fora para o núcleo da célula, onde o programa celular vai reagir de acordo com o sinal recebido (Figura 3). 


Sugiro que você assista ao seguinte vídeo (14 min), que mostra uma animação rica e detalhada de uma cascata de sinalização em ação, com a correspondente resposta da célula. As células podem responder a sinais externos produzindo novas proteínas e a animação mostra este processo.


Animação. Cascata de sinalização enzimática e o processo de transcrição do DNA.

DNA Learning Center by Cold Spring Harbor Laboratory

A cascata de sinalização MAPK em condrócitos

A MAPK é um fator-chave de funções celulares importantes em todos os tecidos do corpo. Isto implica que a MAPK responde a um número grande de antenas celulares, não só ao FGFR3 (visite este artigo em inglês na Wikipedia para ver a figura que mostra as interações conhecidas da MAPK).

Normalmente, a MAPK funciona como um gatilho de crescimento: as células estimuladas via MAPK começam a se multiplicar e sobrevivem por mais tempo. Esta propriedade é facilmente reconhecida por células cancerosas, que frequentemente usam a MAPK para se multiplicar mais rápido. Não é de estranhar que, ultimamente, temos assistido o desenvolvimento de vários novos compostos visando enzimas da cascata MAPK para tratar vários tipos de câncer (revisto aqui).

No entanto, como acabamos de mencionar acima, condrócitos reagem à MAPK exatamente no sentido oposto, e reduzem o seu ritmo de crescimento quando sob influência da sinalização da MAPK. (11) Como isso ocorre? A hipótese do Dr. Pavel Krejci pode responder esta pergunta. (1)

Em sua análise, ele postula que este comportamento dos condrócitos seria uma reação natural ao que eles reconhecem como um sinal errado que vem do FGFR3 mutante. Em outras palavras, devido à superatividade do FGFR3 produzir um excesso de estimulação no crescimento de condrócitos da placa de crescimento, estas células se defendem entrando em um modo de pausa, a senescência celular citada acima. Elas desligam a eletricidade.

Você lembra o que mencionamos no início deste artigo, que há um programa de controle de qualidade que funciona junto com o programa principal, executado na máquina (no corpo), para garantir que as reações químicas estão indo no caminho certo? Assim, a hipótese do Dr. Krejci pode ser uma boa explicação para o comportamento excepcional de condrócitos que enfrentam um excesso de atividade do FGFR3. A célula pode não ver o FGFR3 mutante como uma questão, mas consegue perceber que algo está errado com a excessiva sinalização da MAPK.

Portanto, a acondroplasia seria a consequência final dos condrócitos "diagnosticarem" a sinalização excessiva da MAPK como um problema, ativando assim o software de controle de qualidade para entrar em uma espécie de modo de pausa, a fim de proteger-se do dano potencial que pode ocorrer com o excessivo estímulo ao crescimento, que sabemos ser comum no câncer. Eles se mantêm com as funções celulares básicas, mas param o essencial programa de proliferação para o crescimento ósseo. O resultado são ossos longos curtos, um estreito canal na coluna vertebral e as consequências clínicas da acondroplasia.

FGFR3 e MAPK em células ósseas

Uma vez que há evidências de que o FGFR3 hiperativo também provoca alterações em células do osso (osteoblastos), também é útil ver o que acontece com essas células sob a influência da via FGFR-MAPK. Temos informações sobre isso, por exemplo, que vem de um estudo realizado pelo grupo do Dr. Sunichi Murakami. Em um de seus recentes trabalhos, exploraram a inibição do FGFR3 e da MEK em osteoblastos in vitro e in vivo, e concluiram que a via da MAPK é também muito importante para a saúde dos ossos. (12) 


Conclusão

Uma pergunta que podemos fazer sobre a hipótese do Dr Krejci é relacionada ao próprio mecanismo de ação do FGFR3. Se o FGFR3 é um freio natural para o crescimento ósseo, e age naturalmente através da cascata MAPK, por que condrócitos lançariam mão do processo de senescência, já que o sinal essencial ("pare de crescer") não mudou? Pode ser que o que ativa o processo de senescência seja um "nível" interno de atividade da via MAPK, que quando cruzado, ativa o processo de parada, mas o mecanismo pelo qual isto aconteceria não está claro.

Aproveitando a discussão sobre a ação da MAPK, no próximo artigo vamos analisar outro estudo, onde pesquisadores testaram um par de compostos criados para inibir a MAPK no câncer. O que é relevante em seu trabalho é que eles exploraram esses compostos no osso e na placa de crescimento, com consequentes implicações para várias estratégias de desenvolvimento para o tratamento de acondroplasia.

Referências

1. Krejci P. The paradox of FGFR3 signaling in skeletal dysplasia: why chondrocytes growth arrest while other cells over proliferate. Mut Res 2013; http://dx.doi.org/10.1016/j.mrrev.2013.11.001. 

2. Campisi J & Fagagna FA. Cellular senescence: when bad things happen to good cells. Nature Rev Mol Cell Biol 2007;8:729-40.

3. Campisi JCell biology: the beginning of the end. Nature 2013; doi:10.1038/nature12844. Published online 18 December 2013.


4. Toydemir RM et al. Novel mutation in FGFR3 causes camptodactyly, tall stature, and hearing loss (CATSHL) Syndrome. Am J Hum Genet 2006;79(5):935-41. Acesso livre

5. Foldynova-Trantirkova S et al. Sixteen years and counting: the current understanding of 
fibroblast growth factor receptor 3 (FGFR3) signaling in skeletal dysplasias. Hum Mutat 2012; 33:29–41. 
Acesso livre

6. Krejci P et al. Interaction of fibroblast growth factor and C-natriuretic peptide signaling in regulation of chondrocyte proliferation and extracellular matrix homeostasis. J Cell Sci 2006; 118: 5089-00. Acesso livre

7. Nakao K et al. Impact of local CNP/GC-B system in growth plates on endochondral bone growth. Pharmacol Toxicol 2013; 14 (Suppl 1):48.
Acesso livre
 
8. Yasoda A et al. Systemic Administration of C-Type Natriuretic Peptide as a Novel Therapeutic Strategy for Skeletal Dysplasias. Endocrinology 2009;150: 3138–44.

9. Yasoda A and Nakao K. Translational research of C-type natriuretic peptide (CNP) into skeletal dysplasias. Endocrine J 2010; 57 (8): 659-66.
Acesso livre
 
10. Lorget F et al. Evaluation of the therapeutic potential of a CNP analog in a Fgfr3 mouse model recapitulating achondroplasia. Am J Hum Genet 2012;91(6):1108-14. 
Acesso livre

11. Murakami S et al. Constitutive activation of MEK1 in chondrocytes causes Stat1-independent achondroplasia-like dwarfism and rescues the Fgfr3-deficient mouse phenotype. Genes Dev 2004;18(3):290-305. Acesso livre

12. Kyono A et al. FGF and ERK signaling coordinately regulate mineralization-related genes and play essential roles in osteocyte differentiation. J Bone Miner Metab 2012;30(1):19-30. Acesso livre

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