O futuro bate à porta
Estamos agora a menos de duas semanas do dia do PDUFA* do Voxzogo, quando a Food and Drug Administration (FDA) irá liberar sua resposta ao pedido de comercialização do vosoritide. O vosoritide está em desenvolvimento clínico há cerca de dez anos, sendo investigado como uma terapia para a acondroplasia, a forma mais comum de nanismo. Essa longa estrada tem sido percorrida em meio a vários obstáculos e solavancos ao longo do caminho e, agora que a droga já foi aprovada na Europa, as expectativas são todas sobre como e se a decisão do FDA realmente abrirá novas portas para famílias interessadas em melhorar a saúde de seus filhos com acondroplasia. Mas, vamos ver do que se tratam essas expectativas, já que a próxima semana pode trazer surpresas.
Como os 17 leitores deste blog certamente sabem, a acondroplasia é causada por uma mutação no gene que codifica uma enzima chamada receptor do fator de crescimento de fibroblastos 3 (FGFR3). Eu sei, eu sei, corro o risco de ficar um pouco repetitivo, mas acho que a volta que farei aqui pode nos ajudar a entender o que podemos esperar do dia PDUFA do vosoritide.
Causas e consequências
O FGFR3, junto com muitas outras enzimas, desempenha um papel fundamental durante a fase que os cientistas chamam de desenvolvimento. O desenvolvimento começa com o ovo fertilizado e vai até o final da puberdade e é composto por processos biológicos fortemente regulados por centenas de enzimas como o FGFR3. Você pode chamar esses processos de procedimentos operacionais padrão (POPs). Essas enzimas trabalham em conjunto para fazer com que os POPs funcionem sem problemas, mas quando uma delas sofre mudanças (mutação), seja para funcionar mais do que o planejado ou simplesmente para de funcionar, o processo de desenvolvimento é perturbado.
O FGFR3 é particularmente importante no desenvolvimento ósseo porque atua reduzindo o ritmo de crescimento ósseo, modulando os estímulos de crescimento produzidos por várias outras enzimas. Em um carro, enquanto essas outras enzimas funcionariam como um acelerador, o FGFR3 é um freio. Se não houvesse FGFR3, os ossos cresceriam sem controle e causariam vários problemas médicos. Na verdade, as mutações no FGFR3 que o inativam causam uma síndrome de supercrescimento conhecida como síndrome CATSHL (camptodactilia, estatura alta, escoliose e perda auditiva). (1)
O freio é importante em um carro para que sua velocidade seja controlada. No entanto, a mutação no FGFR3 que causa a acondroplasia faz com que ele funcione demais, de modo que o carro mal consegue se mover (o freio domina o acelerador). O resultado é que, na acondroplasia, os ossos, especialmente os ossos longos e as vértebras, crescem apenas uma fração do que deveriam, em contraste com todos os outros tecidos do corpo.
Indivíduos com acondroplasia têm baixa estatura adulta, mas esta não é a única característica relevante, uma vez que o crescimento esquelético restrito tem importantes consequências além da altura. O desequilíbrio entre os ossos mais curtos ou estreitos em comparação com todos os outros tecidos normais frequentemente leva à complicações clínicas que estão listadas nas diretrizes publicadas sobre a acondroplasia.
Devido ao comprometimento do crescimento ósseo, em média os indivíduos com acondroplasia requerem mais utilização de cuidados de saúde, incluindo tratamento cirúrgico para complicações ortopédicas e neurológicas comuns (por exemplo: estenose do forame magno, estenose espinhal, problemas nas articulações etc.), entre outras, enquanto os adultos também são propensos à obesidade, maior incidência de doenças cardíacas e menor expectativa de vida em relação à população em geral. (2)
À medida que o conhecimento sobre a história natural da acondroplasia é aprofundado, fica claro que se trata de uma desordem genética que afeta muito mais do que a altura final.
Desenvolvendo a primeira terapia para acondroplasia
A alteração genética que leva à acondroplasia foi identificada há quase 30 anos (3-5), mas apenas mais recentemente esforços foram direcionados para encontrar maneiras de corrigir o defeito de crescimento ósseo causado pela mutação hiperativa do FGFR3. Isso se tornou possível porque as redes químicas reguladas pelo FGFR3 foram identificadas (Figura 1), bem como a maioria das vias conduzidas por outros agentes envolvidos no desenvolvimento e crescimento ósseo. Isso, por sua vez, permitiu aos cientistas descobrir quais dessas vias são afetadas por mutações no FGFR3. (6)
Figura 1. Vias de sinalização relevantes do FGFR3 no condrócito.
Um desses outros agentes de desenvolvimento ósseo é uma enzima chamada receptor de peptídeo natriurético B (NPR-B). Tanto o FGFR3 quanto o NPR-B estão localizados na membrana celular dos condrócitos, as células que governam o crescimento ósseo. Eles podem ser vistos como interruptores de luz nas paredes de nossa casa que são ligados e desligados quando os movemos para cima e para baixo. No corpo, o FGFR3 é ativado por FGFs enquanto o NPR-B é ativado pelo peptídeo natriurético tipo C (CNP). Os cientistas descobriram que o CNP é um agente de crescimento ósseo positivo que atua precisamente reduzindo a atividade do FGFR3 no condrócito. (Figura 2). Eles também viram que a via do FGFR3 pode inibir o eixo CNP + NPR-B. (7)
Figura 2. Cruzamento das vias de sinalização do FGFR3 e do NPR-B no condrócito.
Tendo entendido que o CNP modula a atividade do FGFR3 e que pode estar funcionando menos do que o normal na acondroplasia, o próximo passo foi verificar se o fornecimento suplementar de CNP ajudaria a reduzir os efeitos do FGFR3 mutante. Na verdade, isso foi prontamente visto: a adição de CNP a culturas de células, explantes ósseos e modelos animais de acondroplasia restaurou, pelo menos parcialmente, o crescimento ósseo. (8) Uma primeira terapia potencial para a acondroplasia parecia estar disponível.
No entanto, um problema que os cientistas enfrentaram ao lidar com o CNP é que se trata de uma molécula frágil. Peptídeos como o CNP são muito ativos e devem permanecer sob controle. Quando no sangue o CNP dura menos de três minutos circulando, pois é um alvo fácil para os sistemas naturais de limpeza que possuímos. Então, como resolver esse problema? Eles aprenderam que outro peptídeo natriurético chamado BNP é naturalmente mais resistente ao sistema de limpeza porque tem uma estrutura ligeiramente diferente. Eles adaptaram o CNP para "parecer" com o BNP e essa mudança deu origem à invenção do vosoritide. (9) Portanto, vosoritide é uma versão modificada do CNP, também chamada de análogo.
O vosoritide dura cerca de 20 minutos no sangue, tempo suficiente para atingir as zonas de crescimento ósseo (as placas de crescimento) e exercer os seus efeitos. Então, quais são esses efeitos? Ao reduzir a atividade do FGFR3, o eixo NPR-B restaura a capacidade dos condrócitos de proliferar e aumentar (hipertrofiar), as quais são as duas etapas principais pelas quais eles precisam passar para fazer os ossos crescerem. (8)
Um grande desafio no início do desenvolvimento clínico do vosoritide deve ter sido como medir sua eficácia. Em humanos, o crescimento ósseo constitui um processo longo e lento, portanto as mudanças não são identificadas no dia a dia, mas só podem ser vistas quando dois pontos distantes no tempo são comparados. Esse desenvolvimento lento torna difícil estabelecer objetivos quando alguém está tentando corrigir uma perturbação no processo de crescimento ósseo. Ainda mais difícil seria confirmar se a melhora do crescimento ósseo com a droga experimental proporcionaria benefícios adicionais em termos de redução das complicações médicas frequentes que resultam de ossos curtos e estreitos, como a estenose espinhal. Então, como podemos medir esses efeitos? Após longas discussões, como podemos ver descritas nas muitas conferências públicas (principalmente aquelas conferências financeiras) ao longo dos anos, o parâmetro final acordado entre o desenvolvedor do vosoritide e os reguladores, que permitiria determinar se o vosoritide era benéfico (eficácia) no tratamento da acondroplasia foi a velocidade de crescimento ósseo.
O Vosoritide vem sendo testado em crianças com acondroplasia há anos e, de acordo com os dados já disponíveis, ajuda a restaurar o crescimento ósseo a um nível próximo do que acontece em uma criança normal. (10-12) Os dados apresentados à Agência Europeia de Medicamentos (EMA) foram analisados e, em agosto passado, o vosoritide foi aprovado para o tratamento da acondroplasia nos países europeus que trabalham com aquela agência. Os mesmos dados também foram submetidos à Food and Drug Administration (FDA), a qual divulgará seus comentários em alguns dias, como mencionei acima.
O futuro está presente
A aprovação do vosoritide na Europa é um marco para o tratamento da acondroplasia e muito provavelmente para muitas outras displasias esqueléticas em que o crescimento ósseo é prejudicado. Uma característica importante do eixo CNP + NPR-B é que ele funciona independentemente do FGFR3. O uso de análogos do CNP como o vosoritide (há outros em desenvolvimento) pode ajudar a melhorar o crescimento ósseo nessas outras doenças genéticas, não apenas melhorando a altura, mas também as complicações médicas relacionadas a outras condições de restrição de crescimento, como esperamos ver na acondroplasia.
Pode levar mais alguns anos para ver se as crianças tratadas com vosoritide sofrerão menos complicações, tais como infecções do ouvido médio, apnéia do sono, estenose espinhal e genu varum, do que o que é frequentemente visto hoje, mas as expectativas de longo prazo sobre esses benefícios potenciais não devem levar à conclusão de que este medicamento, e todos os outros candidatos que virão, não ajudariam a reduzir essas complicações. E por que isso? Simplesmente porque o tratamento é sistêmico, ou seja, o medicamento chega a todos os ossos ao mesmo tempo. Não há lógica em pensar que apenas um tipo de osso seria afetado pelo tratamento. Portanto, o tratamento não deve apenas aumentar o comprimento dos ossos longos, mas também deve ajudar a alargar outros ossos, como as vértebras, que também crescem através das placas de crescimento.
Saúde infantil
Aqui está a definição de saúde da Organização Mundial de Saúde:
- Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade.
O acúmulo de evidências sobre a história natural da acondroplasia mostra que crianças e adultos com essa displasia esquelética sofrem impactos não apenas no aspecto físico, mas também nos campos mental (emocional) e de bem-estar social. (13,14). Será positivo ver como os tratamentos farmacológicos para a acondroplasia afetarão esses aspectos da saúde.
Com base nas evidências publicadas, os indivíduos submetidos a alongamento cirúrgico de membros apresentam melhora do índice de qualidade de vida após a cirurgia (15, 16), o que implica que a melhora da altura foi benéfica para os outros aspectos da saúde destacados na definição da OMS. Quando pensamos sobre essa melhora observada após a cirurgia de alongamento precisamos lembrar que a cirurgia apenas aumenta a altura, não tendo efeito nas outras características da acondroplasia e em suas complicações comuns, ao contrário do que se espera com as terapias farmacológicas.
Podemos prever um tempo em que bebês e crianças pequenas com acondroplasia não precisarão de ressonâncias magnéticas para descartar estenose do forame magno, ou que crianças não precisarão mais comparecer a consultas repetidas a um otorrinolaringologista para inserir tubos de ouvido, ou que não serão submetidas à amigdalectomia para melhorar sua apnéia do sono, apenas para citar umas poucas situações estressantes pelas quais frequentemente passam ainda tão pequenas. Eles também poderão ser capazes de fazer qualquer coisa que uma criança comum faz, sem os desafios comuns que enfrentam hoje devido ao seu crescimento restrito.
Em conclusão, com base nas evidências atuais, acredito que, com a melhora do crescimento ósseo, as crianças com acondroplasia em tratamento com vosoritide e, no futuro, com outras terapias potenciais, alcançarão benefícios que vão além da redução do risco de complicações médicas, mas certamente à melhoria nos aspectos mentais e sociais, também. Esses benefícios potenciais devem ser levados em conta pelas partes interessadas (autoridades de saúde, planos de saúde, seguradoras) que serão responsáveis por responder a pergunta quanto a adotar ou não terapias para a acondroplasia. Para mim, a resposta simples a essa pergunta é sim.
Referências
* Da Wikipedia: Data PDUFA: Na prática regulatória farmacêutica dos Estados Unidos, a data PDUFA é o nome coloquial para a data em que a Food and Drug Administration deve responder a um pedido de novo medicamento ou licença biológica.
1. Toydemir RM, Brassington AE, Bayrak-Toydemir P et al. Novel mutation in FGFR3 causes Camptodactyly, Tall Stature, and Hearing Loss (CATSHL) Syndrome. AGHG 2006; 79 (5): 935-41. Free access.
2. Hoover-Fong J, Scott CI, Jones MC et al. Health supervision for people with achondroplasia. Pediatrics 2020 Jun;145(6):e20201010. Free access.
3. Rousseau F, Bonaventure J, Legeai-Mallet L et al., Mutations in the gene encoding fibroblast growth factor receptor-3 in achondroplasia. Nature 1994; 371 (6494); 252–54. Free access.
4. Shiang R, Thompson LM, Zhu YZ et al. Mutations in the transmembrane domain of FGFR3 cause the most common genetic form of dwarfism, achondroplasia. Cell 1994;78 (2): 335–42.
5. Bellus GA, Hefferon TW, Ortiz de Luna R et al. Achondroplasia is defined by recurrent G380R
mutations of FGFR3. Am J Hum Genet 1995; 56:368-73. Free access.
6. Legeai-Mallet L and Savarirayan R. Novel therapeutic approaches for the treatment of achondroplasia. Bone 2020; 141:115579. Free access.
7. Ozasa A, Y. Komatsu A. Yasoda M et al. Complementary antagonistic actions between C-type natriuretic peptide and the MAPK pathway through FGFR-3 in ATDC5 cells. Bone 2005; 36: 1056-64. Free access.
8. Lorget F, Kaci N, Peng J et al. Evaluation of the therapeutic potential of a CNP analog in a Fgfr3 mouse model recapitulating achondroplasia Am J Med Gen 2012; 91(6):1108-14. Free access. 9. Wendt DJ, Dvorak-Ewell M, Bullens S et al. Neutral endopeptidase-resistant C-type natriuretic peptide variant represents a new therapeutic approach for treatment of fibroblast growth factor receptor 3-related dwarfism. J Pharmacol Exp Ther 2015;353(1):132-49.
10. Savarirayan R, Irving M, Bacino CA et al. C-Type Natriuretic Peptide Analogue Therapy in Children with Achondroplasia. N Engl J Med 2019; 381(1):25-35. Free access.
11. Savarirayan R, Tofts L, Irving M. Once-daily, subcutaneous vosoritide therapy in children with achondroplasia: a randomised, double-blind, phase 3, placebo-controlled, multicentre trial. Lancet 2020; 396(10252):684-692. Free access.
12. Savarirayan R, Tofts L, Irving M. Safe and persistent growth-promoting effects of vosoritide in children with achondroplasia: 2-year results from an open-label, phase 3 extension study. Genet Med 2021 Aug 2;1-5. doi: 10.1038/s41436-021-01287-7. Free access.
13. Witt S, Kolb B, Bloemeke J et al. Quality of life of children with achondroplasia and their parents - a German cross-sectional study. Orphan J Rare Dis 2019;14(1):194. Free access.
14. Yonko EA, Emanuel JS, Carter EM et al. Quality of life in adults with achondroplasia in the United States. Am J Med Gen 2021; 185(3):695-701.
15. Moraal JM, Elzinga-Plomp A, Jongmans MA et al. Long-term psychosocial functioning after Ilizarov limb lengthening during childhood, Acta Orthopaedica 2009; 80 (6): 704-10. Long-term psychosocial functioning after Ilizarov limb lengthening during childhood: 37 patients followed for 2–14 years. Free access.
16. Kim, SJ., Balce, G.C., Agashe, M.V. et al. Is Bilateral Lower Limb Lengthening Appropriate for Achondroplasia?: Midterm Analysis of the Complications and Quality of Life. Clin Orthop Relat Res 2012; 470: 616–21. Free access.