Saturday, June 16, 2012

Desafios para o tratamento da acondroplasia: do desenvolvimento de drogas à sua administração, parte 2



No último artigo, fizemos uma breve revisão sobre a maratona que uma medicação deve enfrentar antes de chegar aos pacientes. Falamos sobre muitas questões que os cientistas devem responder ao projetar um novo potencial medicamento para tratar uma doença. 

Também falamos sobre a fase de desenvolvimento clínico, que é a parte da pesquisa em que a droga é dada a seres humanos para observar os seus efeitos. Agora, vamos voltar à fase em que a nova droga potencial ainda está no laboratório e ver como os pesquisadores encontram o caminho mais adequado para fazê-la chegar à célula- ou tecido-alvo. Esta é uma área da farmacologia em rápido desenvolvimento, que é comumente descrita como drug delivery (expressão difícil de traduzir, mas que pode ser entendida como transporte ou entrega da medicação ao alvo).

O objetivo deste artigo é dar uma visão panorâmica de algumas das muitas estratégias em desenvolvimento para permitir o transporte da próxima geração de drogas, especialmente as que são feitas de ácidos nucleicos ou projetada para alterar um ou mais aspectos da transcrição de genes (as reações químicas que copiam o código de DNA em RNA, do inglês transcription) e da tradução ou translação (as reações químicas que traduzem o código RNA em uma nova proteína, do inglês translation). O foco é sobre como esses sistemas de transporte podem ser aplicados para ajudar medicamentos a encontrar o caminho para os condrócitos na placa de crescimento cartilaginosa, uma região que sabemos que não é exatamente o lugar mais fácil de alcançar. Existem várias terapias potenciais à espera de serem exploradas para o tratamento da acondroplasia. Identificar os meios mais adequados para fazê-las chegar à placa de crescimento pode ajudar os desenvolvedores de drogas a acelerar a pesquisa.

Criando um novo medicamento

Graças aos avanços da tecnologia da informação, tem sido cada vez mais fácil (se nós realmente pudéssemos dizer isso) estudar as complexas estruturas moleculares formadas por cada uma das milhares de proteínas que o corpo produz. Por que devemos estudá-las? As proteínas são as moléculas que regem todos os aspectos das reações biológicas, ou em outras palavras, elas são as responsáveis finais​​ por ser o que somos. Nós já falamos sobre isso em outro artigo. Como elas participam de quase todas as reações químicas dentro do corpo, aprender como elas são montadas e onde, em suas estruturas uma determinada reação está ocorrendo, permite aos pesquisadores desenvolver compostos que podem interagir com os locais onde ocorrem essas reações ou impedir que elas ocorram. Se você estiver seguindo os artigos desta série pode ser tenha a sensação de que muito está sendo repetido aqui. Mas, veja, há sempre um detalhe a mais incluído ...

Para simplificar e tornar mais fácil entender o mundo químico, normalmente ilustramos as proteínas como estruturas 1D e 2D, como se fossem simples cadeias retas de átomos dispostos um após o outro. Bem, a vida real não é tão simples e a molécula do receptor de fator  de crescimento de fibroblasto tipo 3 (FGFR3), a proteína que, quando alterada por uma mutação no gene FGFR3, causa acondroplasia, vai girar, achatar, enrolar, truncar e fazer muitos outros movimentos e acomodações para alcançar uma estrutura 3D final e tornar-se pronta para fazer o que o FGFR3 é projetado para fazer. Com a ajuda de computadores, os cientistas podem criar modelos 3D do FGFR3 para estudar como ele faz o que faz e onde podemos interferir para bloqueá-lo. O estudo das estruturas de moléculas é chamado de cristalografia.

Transporte de drogas para o lugar certo

Como sabemos que uma determinada droga dada por via oral atingirá o seu alvo dentro do corpo? Para saber como se comportará uma droga no corpo e como o corpo vai lidar com a droga, os pesquisadores realizam estudos de farmacocinética e farmacodinâmica. Enquanto a primeira trata do caminho seguido pela droga a partir do momento em que é administrada, a outra estuda como o corpo lida com ela.

Teoricamente, a maioria das drogas que entram no sangue será capaz de alcançar qualquer de tecido e órgão que recebem fluxo sanguíneo direto. Assim, para muitos medicamentos clássicos, antigos, não há grande preocupação sobre transporte e alcance da droga, mesmo para locais sem vasculatura. O mesmo é verdade para algumas classes das novas drogas utilizadas no câncer, não há nenhuma preocupação relevante sobre elas atingirem a maioria dos tumores. Menciono isto porque a acondroplasia tem se beneficiado da pesquisa do câncer. A indústria farmacêutica está dedicando um grande esforço para criar drogas para bloquear as proteínas que se considera estarem ligadas ao crescimento e progressão do câncer, em uma escala tal, que a pesquisa sobre o câncer é atualmente a maior entre todas as áreas terapêuticas (Berggren et al., 2012).

O FGFR3 é uma destas proteínas, de modo que uma droga destinada a combater um câncer dependente das ações do FGFR3 pode ser usada ​​(teoricamente) para tratar a acondroplasia. Dê uma olhada nesta tabela fornecida no artigo anterior. Você vai encontrar uma série de compostos com ação contra o FGFR3 e pertencentes a essas novas classes de drogas. Alguns dos artigos publicados sobre eles mostram que elas realmente chegam à placa de crescimento e aos condrócitos (ex.: Brown A et al, 2005).

No entanto, para a nova geração de fármacos a ser desenvolvidos para agir na maquinaria de produção das proteínas, é improvável que os padrões clássicos de absorção dos fármacos mais antigos possam ser aplicados. Compostos feitos de aminoácidos, como o CNP, ou feitos de oligonucleotídeos, tais como os aptâmeros ou siRNAs, não serão capazes de alcançar desprotegidos os seus alvos. Isso acontece por causa de sua natureza eletroquímica.

Disfarçando drogas

A Hepatite C é um importante problema de saúde em todo o mundo, pois se estima que milhões de pessoas estejam infectadas pelo vírus causador. A terapia padrão atual para a hepatite C inclui uma droga chamada ribavirina e uma proteína chamada interferon (INF). Graças ao INF, a história da hepatite C mudou e muitos pacientes ficam curados com o tratamento correto. O INF é uma proteína muito importante que ocorre naturalmente no corpo e um ativo participante fundamental do sistema imunológico. É chamado de citocina, um mensageiro entre as células que desencadeia respostas celulares contra um agente invasor, como um vírus.

O INF é tão poderoso que o corpo faz com que ele tenha uma vida curta, produzindo enzimas para degradá-lo e, depois de algumas horas circulando no sangue o INF é inativado por elas. Você pode adivinhar que a meia-vida curta do INF foi um desafio para alguém buscando usá-lo em um tratamento. No início da sua utilização no tratamento da hepatite C, as primeiras formas comerciais do INF tinham de ser administradas três vezes por semana. O tratamento era difícil porque o INF deve ser dado por injeções e, com essa freqüência, provoca uma série de efeitos indesejáveis (naturais) e, conseqüentemente, muitos pacientes desistiam e não o terminavam (24 a 48 semanas de terapia), levando à falha terapêutica.

Máscaras, capas e transportadores

Para superar esta limitação natural, os investigadores desenvolveram um sistema que faz o INF durar até uma semana em circulação no sangue, permitindo assim uma terapia onde é administrado apenas uma vez por semana. A molécula desenvolvida para "proteger" o INF da degradação, dando-lhe tempo para exercer suas ações, é chamada de polietileno glicol ou PEG. Você pode imaginar o quão bem sucedidas têm sido as terapias para a hepatite C hoje, em comparação com as mais antigas, embora o INF continue sendo duro para os pacientes em tratamento devido aos seus efeitos naturais.

Moléculas como o PEG são umas daquelas que poderíamos chamar de máscaras. Tendo a carga elétrica adequada elas reduzem a velocidade da taxa de degradação da droga às quais estão ligadas, elas disfarçam a droga. Outros sistemas de transporte, utilizando moléculas que podem facilitar a entrada do fármaco para as células alvo, têm sido também desenvolvidos. Alguns deles são baseados em compostos que imitam a composição da membrana celular, de modo que eles são chamados sistemas lipídicos de transporte. É comum chamar um complexo formado por uma droga e o seu transportador de nanopartícula (literalmente significando peça muito pequena).

Pesquisadores são capazes de cobrir a droga inteiramente com uma camada de lipídeos (como uma capa) e fazê-la atingir uma determinada célula. Quando o complexo de fármaco e transportador (a nanopartícula) atinge a membrana da célula, os lipídeos do transportador são incorporados à membrana e o fármaco entra na célula para exercer os seus efeitos. Sistemas como estes são soluções inteligentes para melhorar a absorção celular de drogas. Um dos problemas com estes sistemas de transporte é que eles não são suficientemente específicos para garantir que apenas a célula alvo receberá a droga. Para uma recente atualização técnica abrangente sobre nanopartículas lipídicas você pode ler o artigo de Battaglia e Gallarate (2012).

Felizmente, a história não acaba aqui. Pensando em como aumentar a especificidade do transporte, os pesquisadores começaram a anexar outros compostos pequenos à nanopartícula. Por exemplo, sabendo quais tipos de receptores da superfície celular são produzidos pela célula alvo, os pesquisadores podem incorporar à nanopartícula um composto que pode ligar-se a um desses receptores. Claro que o melhor é um receptor que seja produzido apenas pela célula alvo, que é algo não facilmente encontrado. Digamos que encontrar um receptor de membrana exclusivo faz a célula parecer ter um endereço concreto, onde um carteiro poderia entregar uma carta.

Então, vamos ver se conseguimos encontrar um "endereço" bastante específico dentro da cartilagem que poderíamos utilizar para aumentar o fornecimento de uma droga contra o FGFR3. Na verdade, existem poucos pesquisadores que trabalham em transporte de medicamentos para a cartilagem e os artigos recentes no campo descrevem sistemas que visam apenas a cartilagem articular, através da administração local. Isto não irá funcionar na acondroplasia porque todos os ossos em uma criança estão em crescimento e terão de receber a terapia ao mesmo tempo, de uma maneira estável. Assim, para a acondroplasia, precisamos de uma terapia sistêmica (corpo inteiro).

No entanto, como disse antes, esses estudos também estão procurando maneiras de garantir que os medicamentos que eles querem introduzir na cartilagem articular serão devidamente absorvidos. Uma maneira de fazer isso é exatamente a de encontrar um endereço dentro do tecido, para atingir os condrócitos.

Sabendo que uma molécula chamada ácido hialurônico tem grande afinidade com um marcador da membrana celular chamado CD44, que é expresso (produzido) por condrócitos, um grupo de investigadores desenvolveu um sistema em que o ácido hialurônico é ligado à “capa” das nanopartículas. Eles foram capazes de provar que, usando essa estratégia, a absorção da droga dentro da nanopartícula foi muito maior do que com um comparador sem ácido hialurônico (Laroui et al., 2007).

Outro grupo (Rothenfluh et al, 2008) descreveu um sistema em que eles envolvem a droga em uma capa de uma molécula semelhante ao PEG e adicionam a esta capa uma molécula que tem grande afinidade pela matriz cartilaginosa, o tecido que envolve os condrócitos (revisto em um artigo anterior). Por causa do sistema utilizado, a matriz retém a nanopartícula, gerando uma maior exposição da droga dentro da cartilagem.

Estes são apenas dois exemplos. Existem muitos outros sistemas de transportes em desenvolvimento. Vários deles podem ser úteis para a administração de medicamentos com base em ácidos nucleicos (oligonucleotídeos, aptâmeros) para aumentar a sua absorção pelos condrócitos. No entanto, precisamos de mais pesquisas dirigidas à placa de crescimento, a fim de encontrar soluções inteligentes para ultrapassar o desafio da cartilagem. Uma ampla revisão de sistemas de transportes foi publicada em 2011, abrangendo muitos aspectos deste campo (Villaverde A, Ed., Nanoparticles in Translational Science and Medicine, 2011).

Mencionei antes que este artigo seria como uma visão panorâmica do campo do transporte de medicamentos. O objetivo principal foi mostrar que, mesmo para uma condição genética como a acondroplasia, onde o alvo do tratamento é de difícil acesso, há soluções possíveis para chegar lá. Um investigador trabalhando em estratégias terapêuticas para acondroplasia não deve sentir-se limitado pela barreira da cartilagem.

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