Thursday, January 7, 2016

FGFR4: um problema para as potenciais estratégias de tratamento da acondroplasia com armadilhas de ligantes?



Introdução

Alguém interessado em aprender sobre o mecanismo de crescimento ósseo logo descobre que o processo através do qual os ossos se desenvolvem é incrivelmente complexo. A maioria dos nossos ossos não começa como tecido ósseo, mas como estruturas ou andaimes de cartilagem que, depois de uma série muito sofisticada de passos, são substituídas pelo osso definitivo, em um processo contínuo que dura até ao final da puberdade, quando a base de cartilagem desaparece. Ao pensar sobre o desenvolvimento dos ossos, é preciso ter em mente que, embora já tenhamos bastante conhecimento sobre o processo, ainda estamos apenas no início de compreender todos os fenômenos biológicos que ocorrem no interior dos ossos. Assim, não é surpreendente que dia sim, dia não novas peças do quebra-cabeça são trazidas pela ciência, desafiando esse conhecimento, reforçando o que Albert Einstein disse uma vez:


Nós ainda não sabemos um milésimo de um por cento do que a natureza nos revelou.

Estive pensando nisso depois de ler um interessante estudo sobre os efeitos do receptor de fator de crescimento de fibroblastos 4 (FGFR4) sobre o crescimento ósseo (1). O FGFR4 é um irmão do FGFR3, a enzima que, quando mutada, causa a acondroplasia. Bem, temos uma nova peça do quebra-cabeça? Acho que vale a pena fazer uma breve revisão desse estudo porque ele pode trazer algumas implicações para algumas das novas terapias potenciais para a acondroplasia. Mas, vamos começar devagar para colocar os resultados desse estudo em contexto.

O intrincado processo de crescimento ósseo


Com algumas poucas exceções, nossos ossos crescem a partir de pequenas regiões localizadas em suas extremidades, chamadas de placas de crescimento (Figura 1). Dentro das placas de crescimento vivem as células que lideram o processo de crescimento, os condrócitos.

Figura 1. Diagrama da placa de crescimento com as várias camadas de condrócitos.


O condrócito é o "chefe", mas ao mesmo tempo tem que realizar muitas instruções químicas em paralelo ou seriais dadas por dezenas de agentes de crescimento locais e sistêmicos, que por sua vez podem funcionar ou como promotores ou supressores de crescimento (Figura 2). Os condrócitos, obedecendo a esses diversos agentes locais e sistêmicos, passam por uma série de transformações que podem ser facilmente detectadas ao microscópio (Figura 1), começando a partir de células pequenas, em repouso (resting zone), passando por uma fase de elevada taxa proliferativa (zona proliferativa), para um estado em que eles sofrem um impressionante aumento do seu volume celular, quando são chamados de condrócitos hipertrofiados (Figura 1). Esta última fase é considerada como a principal responsável pelo crescimento ósseo.

Figura 2. Alguns dos fatores de crescimento que regulam o desenvolvimento da placa de crescimento (2).

Extraído de Kozhemyakina E et al. A pathway to bone: signaling molecules and transcription factors involved in chondrocyte development and maturation. Development 2015;142(5):817-31. Acesso livre. Reproduzido aqui apenas para fins educacionais.

A cascata FGF / FGFR

Um dos processos químicos que regem o crescimento ósseo é fornecido pelo que chamamos de cascata (ou via) de sinalização do fator de crescimento de fibroblastos (FGF) / receptor do fator de crescimento de fibroblastos (FGFR), que é familiar para quem está interessado em acondroplasia. A família dos FGFs é composta por 23 fatores de crescimento diferentes, e a família dos FGFR tem quatro enzimas irmãs (e uma nova, candidata a se tornar a quinta) (3). Aqui, focamos no crescimento dos ossos longos, então não vou mencionar todas as atividades que o eixo FGF / FGFR têm no corpo e nos poucos ossos que crescem pelo que é chamado de processo intramembranoso.



Para ajudar a entender o que é a cascata de sinalização, você pode rever outros artigos relacionados do blog (consulte a página Português na barra acima). Em resumo, como em uma série de blocos de dominó, uma ligação química inicia outra, que ativa uma terceira, e essa uma quarta, em uma cadeia de reações químicas. Essas cascatas de sinalização fornecem instruções aos condrócitos para como eles devem reagir a cada um dos estímulos recebidos. FGFs são chamados de ligantes, porque iniciam a cascata química ao se ligarem com a molécula receptora, um dos FGFRs.

Embora o número de FGFs seja grande, apenas alguns têm participação mais intensa no processo de crescimento dos ossos longos. Cientistas identificaram até agora o FGF9 e o FGF18 como os com mais influência sobre os condrócitos da placa de crescimento (3-5).

Depois de décadas de sua descrição, pesquisadores já identificaram as principais funções dos três primeiros FGFRs no crescimento ósseo. O FGFR4 não tem, até o momento, sido reconhecido como relevante para este processo. Veja a Tabela 1, extraída de uma recente revisão dos Drs. David Ornitz e Nobuyuki Itoh (3), que lista os efeitos da ablação dos FGFRs em modelos genéticos. Você verá que os modelos que exploraram a ablação ou mutações com perda de função do FGFR4 não mostraram consequências na placa de crescimento. Mais do que isso, parece que o FGFR4 é mais ligado a processos metabólicos, incluindo os da vitamina D e do fosfato, que são cruciais para o desenvolvimento e saúde óssea, mas de uma forma redundante com outros FGFRs.


Tabela 1. Efeitos da inibição genética (perda de função) dos FGFRs

 
O FGFR4 é relevante para o crescimento ósseo?


É por isso que o estudo recente de Cinque et al. (1) é interessante. Os investigadores trabalharam no papel do FGFR4 no crescimento do osso em diversos modelos celulares e animais e terminaram por encontrar que o bloqueio da sinalização do FGFR4 provoca perturbações no crescimento do osso por interferir em um mecanismo que faz parte do equilíbrio normal das células em tecidos, chamado autofagia.

No seu estudo, a autofagia foi ligada ao circuito de modulação do colágeno 2, que é o componente principal da matriz da cartilagem. Não quero tornar este texto mais complexo do que já é. Basta entender que o colágeno 2 é muito importante para a expansão da placa de crescimento e, consequentemente, do osso. Se existe menos colágeno 2 na matriz cartilaginosa, o processo de crescimento é prejudicado.

O efeito de inibição da FGFR4 parece ser especialmente observado em condrócitos mais maduros (pré-hipertrofia / hipertrofia; ver acima). A ausência de sinalização do FGFR4 levaria a placas de crescimento mais finas, e assim a ossos mais curtos. Mais importante, os pesquisadores descobriram que o FGF com mais influência sobre o FGFR4 é o FGF18. Quando o FGF18 ativa o FGFR4, desencadeia as reações químicas no interior dos condrócitos que regulam a expressão (produção) de colágeno 2, permitindo a expansão normal da zona hipertrófica. Tanto a deficiência de FGF18 quanto a inibição do FGFR4 levou à perturbação do processo de autofagia.

Bem, isso parece estranho

Estes resultados são um pouco surpreendentes, porque, como vimos, estudos anteriores falharam em mostrar problemas específicos causados ​​pela ablação de FGFR4 nos ossos. Então, como vamos lidar com esta nova informação? Em primeiro lugar, podemos perguntar como os pesquisadores em estudos anteriores avaliaram as alterações causadas pela inibição da FGFR4 nas placas de crescimento. Talvez eles nem tenham acessado esse processo específico nas placas de crescimento, ou eles usaram diferentes técnicas, ou as técnicas disponíveis então, não eram sensíveis o suficiente para detectar qualquer consequência relevante com a inibição desta enzima. Em segundo lugar, seria interessante ver se os resultados obtidos por Cinque et al. (1) são reproduzíveis. Às vezes, experiências não podem ser reproduzidas e as conclusões iniciais são reconhecidas como falhas. No entanto, neste caso, os investigadores parecem ter repetido os testes com técnicas diferentes e terminaram por encontrar basicamente os mesmos resultados. No entanto, eles admitem que outros estudos devem ser realizados para melhor compreender o papel do FGFR4 no desenvolvimento ósseo.

E por que estes resultados são um pouco preocupantes quando se pensa em tratamentos para a acondroplasia? Que tipo de perguntas estes novos dados trariam afinal de contas?

Um problema para as estratégias de armadilhas de ligante (ligand trap)?


O fato é que nós sabemos que o FGF18 é um dos ativadores mais relevantes do FGFR3 na placa de crescimento. A ativação do FGFR3 por si só não é um problema, em condições normais: os ossos precisam do FGFR3 para regular sua velocidade de crescimento. No entanto, quando o FGFR3 está mutado como na acondroplasia, qualquer ativação contribui para o bloqueio do crescimento visto nesta displasia esquelética. Uma das abordagens que estão sendo exploradas para tratar eficientemente a acondroplasia é exatamente a de bloquear a ativação do FGFR3, e existem várias potenciais estratégias visando esse objetivo. Temos acompanhado com grande interesse o desenvolvimento das chamadas armadilhas de ligante (ligand traps; (6-8); ler este artigo anterior do blog). Particularmente, o estudo pelo grupo liderado pela Dr. Gouze (6) mostrou resultados significativos sobre o resgate de crescimento do osso usando uma versão solúvel (livre) do FGFR3. O grupo da Dr. Gouze apresentou resultados tão impressionantes com sua abordagem em um modelo de rato (Figura 3) que o sFGFR3 está agora em desenvolvimento sério visando potenciais ensaios clínicos no futuro (9).


Figura 3. Efeito da armadilha de ligante sFGFR3 em um modelo animal de acondroplasia (6).


O conceito da armadilha de ligante para acondroplasia é bastante simples. Com uma forma livre de FGFR3 circulando dentro da placa de crescimento, provocaríamos uma "competição" entre esta versão livre e a que fica ancorada nos condrócitos (aquela que faz o condrócito parar de crescer na acondroplasia) para se ligar aos FGFs locais (principalmente FGFs 9 e 18), resultando em "aprisionamento" destes FGFs pela forma solúvel e em menos ativação dos FGFR3 presos aos condrócitos. Se estes não são ativados, exerceriam menos atividade e o crescimento ósseo não seria tão prejudicado como vemos na acondroplasia. A imagem acima (Figura 3) nos leva a pensar que a estratégia da armadilha de ligante é promissora.

No entanto, essas armadilhas de ligante visam principalmente o FGF9 e o FGF18 (e possivelmente FGF2). Levando-se em conta que o FGF18 seria capturado pelas armadilhas, haveria menos ativação do FGFR3 (que é o que queremos, pensando na acondroplasia), mas também poderia haver consequências ao se ter menos FGF18 ativando o FGFR4. Entende?

O FGF18 é tido como o principal gatilho do FGFR3 (3) e, se levarmos em conta os resultados por Cinque et al. (1), também o é para o FGFR4. Ao tratar a acondroplasia com uma armadilha de ligante estaríamos impedindo a ação do FGF18 no FGFR3 (o que é bom), mas também no FGFR4. No primeiro caso, o resultado seria positivo, mas no último, quais seriam as consequências?

No estudo de Cinque et al. (1), os pesquisadores também observaram que tanto o FGFR3 e FGFR4 foram ativados pelo FGF18 em seus modelos. Ambos os FGFRs estavam ligados ao processo de autofagia, mas os pesquisadores notaram que apenas FGFR4 foi significativamente associado com o controle deste fenômeno. Aqui, novamente, vemos alguma redundância do efeito do FGFR4 (com o FGFR3), e por isso o nível de relevância do efeito do FGFR4 ainda tem que ser abordado, e novos estudos confirmatórios são necessários para entender melhor o papel do FGFR4 no processo de crescimento ósseo.

Enquanto isso, com os resultados impressionantes demonstrados pelo estudo com o sFGFR3 (6; Figura 3), é possível que o eventual efeito da redução da ativação FGF18 / FGFR4 seria compensado pelo resgate de crescimento promovido pela inibição da via do FGFR3.

Vamos continuar a seguir esses desenvolvimentos. O próximo artigo analisará novas informações sobre como controlar a produção de FGFR3. Não, não é sobre uma terapia genética, nada de edição de DNA.

Referências

1. Cinque L et al. FGF signalling regulates bone growth through autophagy. Nature 2015; 528:272–5. doi:10.1038/nature16063.

2. Kozhemyakina E et al. A pathway to bone: signaling molecules and transcription factors involved in chondrocyte development and maturation. Development 2015;142(5):817-31. Free access.


3. Ornitz DM and Itoh N. The Fibroblast Growth Factor signaling pathway. WIRE Dev Biol 2015;4(3):215–66. Free access.
4. Garofalo S et al.Skeletal dysplasia and defective chondrocyte differentiation by targeted overexpression of fibroblast growth factor 9 in transgenic mice. J Bone Miner Res 1999;14(11):1909-15. Free access.
 5. Davidson D et al. Fibroblast growth factor (FGF) 18 signals through FGF Receptor 3 to promote chondrogenesis. J Biol Chem 2005;280:20509-15. Free access.

6. Garcia S et al. Postnatal soluble FGFR3 therapy rescues achondroplasia symptoms and restores bone growth in mice. Sci Transl Med 2013;5:203ra124. doi:10.1126/scitranslmed.3006247.

7. Tolcher A et al. Preliminary results of a dose escalation study of the fibroblast growth factor(FGF) “trap” FP-1039 (FGFR1:Fc) in patients with advanced malignancies. 22nd EORTC-NCI-ACR symposium on molecular targets and cancer therapeutics, November 16-19, 2010. Berlin, Germany. Free access.

8. Ghivizzani SC. Delivery of soluble FGFR3 as a treatment for achondroplasia. National Institute of Arthritis and Musculoskeletal and Skin Diseases. 2013; Project Number: 5R01AR057422-04.

9. Therachon press release 2015. Free access.

 

No comments:

Post a Comment